segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Perspectiva de vida em greve


História de um José que tem muito para contar, exceto seu tempo

por Andressa Molina

Após se virar algumas vezes na cama branca, acordar com o noticiário das 6, folhear jornais, revistas e livros esquecidos e bater papo com seus colegas de quarto, José contava os segundos do relógio para ver se coincidiam com seu tempo. O ponteiro do tic tac rastejava naquele quarto frio – aliás, o cobertor demorava tanto a chegar quanto o tão esperado dia.
Ele estava morando naquela casa vazia de corredores largos desde 2009, quando iniciou o tratamento para leucemia. Já conhecia o jeito de alguns médicos e enfermeiros aplicarem a injeção, a quantidade que devia usar e economizar os materiais de higiene doados e já sabia até contar as histórias dos voluntários para os novos que chegavam, inclusive a piadinha do atum – o peixe que caiu do prédio.
Lá ouvia muitas histórias. Pacientes que estão em uma fila para entrarem em uma segunda fila e daqueles que nasceram sentados em uma conversa com o herói de branco. Naquele hospital sombrio, tinha gente de todo credo. Uns se sustentavam pela fé, outros pelas comidas escondidas trazidas pelos familiares; outros ainda tinham esperança na tevê, com o verbo no passado mesmo, porque a televisão foi para o conserto e não voltou mais. Assim como os outros, José também acreditava.
Conhecido como TMO, o Transplante de Medula Óssea por vezes é a única esperança de cura para portadores de cânceres no sangue, como linfomas, mieloma múltiplo, anemia e outros tipos de leucemia. Mas há uma fé que ultrapassa os muros do Olimpo: a esperança em encontrar um doador compatível para outros Josés. Entre irmãos, a chance de compatibilidade é apenas 25%. Com o pai ou a mãe, a probabilidade se reduz a 5%. “Atualmente, a chance de encontrar um doador compatível no banco de medula óssea é uma em 300 mil” explicava o doutor para José. E quando encontrado, o doador ainda pode voltar atrás e recusar a doação.

Certa vez – ou mais uma vez - José recebera na cama ao lado um desses pacientes que vem e vai. Mas esse era especial, pois se dizia prosador. Não importava o assunto, ele fazia poesia com cada palavra de José. Abria os olhos e começava a declamar para os companheiros de quarto, enquanto os outros caiam na gargalhada. Foi quando José descobriu que seu nome pertencia a um lindo poema de um tal Carlos Drummond de Andrade chamado José. E agora, José? O amigo lhe explicara o poema. Contou que se trata da solidão do homem, da sua falta de espaço e angústia pela vida. Dizia que a felicidade já existiu naquele José, mas agora só há escuridão, frio e abandono. Ainda assim, afirmou o amigo, José não é louco: ele ama, escreve, protesta e é capaz de esperar, tal qual o José dessa história. E agora, José? Nosso José se perguntou quando descobriu que precisaria esperar na fila para viver; quando sentiu a dor da greve nos hospitais públicos e, principalmente, quando o amigo prosador se foi.
Para ele, perdido no tempo, o esfigmomanômetro lembra um relógio, pois a batida do coração já faz tic tac Foto: Andressa Molina
Mas pouco importa a história de José. Para ele, a parte mais difícil já havia passado, o doador fora encontrado, mas a espera continuava: mais de 60 pessoas estavam na fila para o transplante, mais de 60 Josés, mais de 60 “raras medulas” que precisavam esperar, pois com dois meses de greve, 28 mil procedimentos deixaram de ser feitos na unidade. O transplante de José era um dos 28 mil. Mais uma espera.
Para evitar que mais Josés esperem pela cirurgia de transplante – além do que já aguardaram para encontrar o doador – o Ministério Público deu mais um prazo para que mais enfermeiros voltem a trabalhar no setor. Se a determinação não for cumprida, os grevistas serão acionados na Justiça.
Enquanto esperava por boas notícias, José se distraia com o perfil dos candidatos às eleições municipais, já que o voto é obrigatório com ou sem melhoria nos plantões. Um prometia mais universidades, o outro faria ciclovias, o terceiro era ainda mais audacioso, queria professores motivados; e o quarto, por fim, prometia melhoria na saúde pública, aquela velha e malandra promessa. José decidiria votar naquele que prometesse cumprir o que insiste a Declaração dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à vida”. E percebia, aos poucos, que definitivamente o tempo do relógio do quarto branco não era o mesmo que o seu.

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