História de
um José que tem muito para contar, exceto seu tempo
por Andressa Molina
Após se
virar algumas vezes na cama branca, acordar com o noticiário das 6, folhear
jornais, revistas e livros esquecidos e bater papo com seus colegas de quarto,
José contava os segundos do relógio para ver se coincidiam com seu tempo. O
ponteiro do tic tac rastejava naquele quarto frio – aliás, o cobertor demorava
tanto a chegar quanto o tão esperado dia.
Ele estava morando naquela casa vazia de corredores
largos desde 2009, quando iniciou o tratamento para leucemia. Já conhecia o
jeito de alguns médicos e enfermeiros aplicarem a injeção, a quantidade que
devia usar e economizar os materiais de higiene doados e já sabia até contar as
histórias dos voluntários para os novos que chegavam, inclusive a piadinha do
atum – o peixe que caiu do prédio.
Lá ouvia muitas histórias. Pacientes que estão em
uma fila para entrarem em uma segunda fila e daqueles que nasceram sentados em
uma conversa com o herói de branco. Naquele hospital sombrio, tinha gente de
todo credo. Uns se sustentavam pela fé, outros pelas comidas escondidas
trazidas pelos familiares; outros ainda tinham esperança na tevê, com o verbo
no passado mesmo, porque a televisão foi para o conserto e não voltou mais. Assim
como os outros, José também acreditava.
Conhecido como TMO, o Transplante de Medula Óssea por
vezes é a única esperança de cura para portadores de cânceres no sangue, como
linfomas, mieloma múltiplo, anemia e outros tipos de leucemia. Mas há uma fé
que ultrapassa os muros do Olimpo: a esperança em encontrar um doador
compatível para outros Josés. Entre irmãos, a chance de compatibilidade é
apenas 25%. Com o pai ou a mãe, a probabilidade se reduz a 5%. “Atualmente, a
chance de encontrar um doador compatível no banco de medula óssea é uma em 300
mil” explicava o doutor para José. E quando encontrado, o doador ainda pode
voltar atrás e recusar a doação.
Certa vez – ou mais uma vez - José recebera na cama
ao lado um desses pacientes que vem e vai. Mas esse era especial, pois se dizia
prosador. Não importava o assunto, ele fazia poesia com cada palavra de José.
Abria os olhos e começava a declamar para os companheiros de quarto, enquanto
os outros caiam na gargalhada. Foi quando José descobriu que seu nome pertencia
a um lindo poema de um tal Carlos Drummond de Andrade chamado José. E agora,
José? O amigo lhe explicara o poema. Contou que se trata da solidão do homem,
da sua falta de espaço e angústia pela vida. Dizia que a felicidade já existiu
naquele José, mas agora só há escuridão, frio e abandono. Ainda assim, afirmou
o amigo, José não é louco: ele ama, escreve, protesta e é capaz de esperar, tal
qual o José dessa história. E agora, José? Nosso José se perguntou quando
descobriu que precisaria esperar na fila para viver; quando sentiu a dor da
greve nos hospitais públicos e, principalmente, quando o amigo prosador se foi.
Para ele, perdido no tempo, o esfigmomanômetro lembra um relógio, pois a batida do coração já faz tic tac Foto: Andressa Molina |
Para evitar que mais Josés esperem pela cirurgia de
transplante – além do que já aguardaram para encontrar o doador – o Ministério
Público deu mais um prazo para que mais enfermeiros voltem a trabalhar no
setor. Se a determinação não for cumprida, os grevistas serão acionados na
Justiça.
Enquanto esperava por boas notícias, José se
distraia com o perfil dos candidatos às eleições municipais, já que o voto é
obrigatório com ou sem melhoria nos plantões. Um prometia mais universidades, o outro faria ciclovias, o terceiro era ainda mais audacioso, queria professores
motivados; e o quarto, por fim, prometia melhoria na saúde pública, aquela
velha e malandra promessa. José decidiria votar naquele que prometesse cumprir
o que insiste a Declaração dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à
vida”. E percebia, aos poucos, que definitivamente o tempo do relógio do quarto
branco não era o mesmo que o seu.